Pra mim Robert Crumb é uma espécie de Goya da civilização urbana moderna. Creio que os desenhos do americano mostram a dissolução dos instintos básicos do homem moderno, como os Caprichos do pintor espanhol mostraram a bestialidade da guerra, a estupidez das crendices, a vaidade, a mentira, tudo o que a vida contém de desagradável: Goya era moralista e perdeu o encanto pelo homem. Crumb é cínico, sarcástico e sem piedade.
Crumb pegou o que de pior havia na vida americana como os quadrinhos de horror, a pornografia dos "catecismos" sexuais largamente difundidos numa sociedade reprimida e misturou tudo isso e muito mais que há de nojento, de feio, irrascível e cruel na vida americana, com a angústia sufocante de Henry Miller vivendo o "pesadelo de ar-condicionado". Enquanto desenhava ia mudando a maneira de fazer HQ. Mas eu não entendo nada de histórias em quadrinhos. O que me interessa é o desenho, é o traço, é a construção dos contornos, é a expressão da linha... Crumb é o máximo! A representação visual no final do século passado e o início deste deve tudo a ele - os modernos grafiteiros mais do que ninguém.
A imagem dessa mulher socando a própria boca sempre me fascinou. Pra mim tem o mesmo valor daquele touro que Picasso pintou em Guernica. Acho até mais terrível do que o touro. Aqui vemos um "ser humano" com a bestialidade animal desencadeada num ato de fúria. Este soco que não é flagelação (pois a intenção de remir um pecado e alcançar a purificação não é o caso aqui), tem o mesmo valor do coito interminável que Henry Miller descreveu em todos os seus livros. A mão que parece entrar boca adentro da mulher numa auto-devoração esgota o significado da existência.
Quando joguei esta imagem numa espiral, reproduzindo interminávelmente o movimento como na persistência de uma sessão de tortura, procurei ao mesmo tempo dar à imagem uma qualidade circense, como se a "lona" quadriculada em cores berrantes ao fundo e que parece estufada pelo movimento do flagelo, complementasse o espetáculo, como vemos nestas lutas de mulheres meio peladas em promíscuos rings de lama que a tv mostra nas tardes de domingo.
Comments
This is so fascinating. It reminds me of Escher's tilings, probably becase of the black and white line drawing.
Best regards,
Susan